Relatos pessoais sobre o referendo de 1º de outubro na Catalunha – I

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Dois anos após a realização do referendo de autodeterminação, o conflito político entre Catalunha e Espanha ainda não foi resolvido. Desde 1º de outubro de 2017, testemunhamos diversas tentativas de criminalização do movimento independentista, especialmente entre 12 de fevereiro de 12 de junho deste 2019, período do julgamento aos líderes civis e políticos catalães. Não foram somente eles os julgados, mas também aqueles que exerceram, exercem e querem seguir exercendo a democracia. Mas como exercê-la em um Estado onde o rei diz que “é inadmissível apelar a uma suposta democracia acima da lei”, e que “sem respeito à lei, não há convivência e nem democracia, mas sim insegurança e arbitrariedade” [21 de fevereiro de 2019]? Em 3 de outubro de 2017, Felipe VI fez duras críticas aos líderes independentistas, mas não se manifestou sobre a violência policial contra pessoas que tinham uma única missão dois dias antes: votar.

Cada eleitor e cada eleitora que se dispôs a depositar em uma urna o futuro que queria para a Catalunha tem a sua história. Umas mais marcantes que outras. Marcas que foram deixadas de forma positiva, mas também negativa, tanto na memória quanto no corpo. Para dar voz a essas pessoas, o Aqui Catalunha reuniu impressões e relatos pessoais sobre o referendo de 1º de outubro na Catalunha. Detalhes desconhecidos para a imensa maioria dos leitores de língua portuguesa. Inicialmente, a ideia era compilá-los em apenas uma publicação, mas algumas lembranças foram contadas com tantas palavras e carga emocional que nossos planos foram alterados. Esta publicação, portanto, é apenas a primeira parte desta série [que não seria].

Outras entrevistas: De Fortaleza para Barcelona: conheçam a história de Marcelo Viana

Conexão Brasil – Catalunha em 1º de outubro de 2017

Francesc, em São Paulo: ‘Senti vergonha e nojo de pertencer a um Estado que fazia aquilo com a Catalunha’

“Assisti às votações no Catalonia, com minha companheira brasileira. Otimista e animado porque, naquele dia, estava sendo aberta uma porta para uma nova dimensão, um novo futuro para a Catalunha. Depois de mostrar à ela [companheira] algumas das peculiaridades e fotografias da nossa terra, começamos a ver a extrema violência e repressão da polícia. Violência que ninguém de nós estava esperando. Senti vergonha e nojo de pertencer a um Estado que fazia aquilo com a Catalunha. Ninguém conseguia dar uma explicação coerente sobre aquilo que víamos. Fiquei tão decepcionado e com um gosto amargo na boca que fomos embora… Acho que fomos das primeiras pessoas que saíram.

Cheguei em casa e me afundei no sofá, tentando entender aquilo. Fiquei esperando notícias da Catalunha, porque meu filho era presidente de mesa. Eu estava sofrendo por ele. Pela madrugada, ele me mandou uma mensagem, me dizendo para ficar tranquilo, que estava tudo bem, que o local onde estava não havia sido invadido. Mas quando eles souberam que havia policiais chegando às proximidades do colégio, tiveram que esconder as urnas sob o telhado do edifício, abrindo uma placa do teto falso. Passado o perigo, puderam pegar as urnas novamente, e continuaram a votação.

Ele me contou que, naquela manhã, uma senhora de 85 anos e em cadeira de rodas foi à sua mesa para votar ‘SIM’ de uma vez. As quedas de conexão da Internet e o fato de ter que esconder as urnas lhe fizeram voltar para casa com sua família para almoçar e descansar [viviam um pouco longe]. Meu filho pensou que ela não fosse mais voltar, mas para sua surpresa, a senhora voltou pela tarde… e com muita dignidade… e votou. Outros como ela, com todas as dificuldades, também votaram. Fiquei emocionado, e ainda me emociono. Isso mostra que, apesar das adversidades, somos um povo incrível, teimoso e democrático. Visca Catalunya!”

Sergi Marzabal, responsável pelo site Catalans al món: ‘A história se alimenta de dias como o 1º de outubro’

“O 1º de outubro foi um dos feitos mais intensos da história recente da Catalunha, sem sombra de dúvida. Pessoalmente, calhou de ser um dia em que eu estava morando em Dallas, onde havíamos organizado, na noite anterior, um jantar com os amigos do local para celebrarmos o referendo.

Nem é preciso dizer que acompanhamos as notícias daquele dia, todas elas, pela Internet, como se estivéssemos lá, mas sabendo que também não estávamos para defender as urnas. Acho que o que fez aquele dia ser especial foi a dualidade absoluta do que sentimos. Por um lado, um orgulho profundo da nossa terra e do nosso povo, que se organizou contra todo um Estado para fazer o referendo. Os bairros, as pessoas, O POVO da Catalunha foi às ruas para defender um direito inalienável, e isso nos constituiu como sociedade, como país.

Por outro lado, um nojo absoluto, incomensurável, um enjoo sem fim, uma raiva infinita quando vimos aqueles vermes de merda com uniforme e bandeira espanhola batendo em idosos indefesos. Uma raiva de fazer chorar, lágrimas de ódio, daquela raiva que provoca mudanças na história. E que provocará. A história se alimenta de dias como o 1º de outubro.

Cada pessoa em seu devido lugar. O povo com o povo, e os vermes com os vermes. Jamais vamos nos esquecer daquilo, daquela raiva. Mas tampouco vamos nos esquecer do orgulho de fazer parte de um povo que defendia as urnas com o próprio corpo. E aqui seguimos, teimosamente firmes”.

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