Dilma Felizardo: “Apreciar a diferença nos proporciona uma visão mais ampla do mundo”

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A psicóloga brasileira Dilma Felizardo (Jardim, Ceará) foi morar em Barcelona em 2001 para fazer o doutorado e, desde então, ela mora entre a capital catalã e Natal, no Estado do Rio Grande do Norte.

Em entrevista ao Aqui Catalunha, Dilma conta como é a sua atual relação com a Catalunha. Também relata como foi a sua experiência em Barcelona, e como isso a levou a criar o Centro Catalão de Natal.

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Quando começou a sua relação com a Catalunha?  

A minha relação com a Catalunha se deu inicialmente a partir do trabalho que desenvolvia na ONG Casa Renascer, em Natal, quando fui convidada, em 1997, para ministrar um ciclo de conferências em diversos países Europeus, que finalizou na cidade de Barcelona, atendendo ao convite de duas instituições catalãs: Infància Viva e Fundació Pau i Solidaritat” uma ONG para o desenvolvimento de cooperação internacional, constituída pela iniciativa de Comissió Obrera Nacional de Catalunya.

Em 2000, fui convidada para mais um ciclo de palestras e conferências de imprensa, ocasião em que ministrei uma palestra no Centre Cívic Sagrada Família de Barcelona, 4rt Cicle Intercultural, abordando o tema “La condició de la dona-joven-nena pobre de Brasil”, organizado por Infància Viva e ECPAT – Espanya. Nesse evento, conhecei a professora Dolores Juliano, da Universidade de Barcelona, que me convidou para, no outro dia, participar de uma reunião do seu grupo de pesquisa, o que me deixou muito honrada.

Eu já estava pensando em fazer o doutorado, mas não tinha definido onde, e esse encontro com a professora Dolores Juliano foi de fundamental importância para tomar uma decisão. Foi uma decisão, das mais acertadas, fazer o doutorado no Departamento de Psicologia da Universidade de Barcelona. Durante todo o tempo que estive escrevendo a minha tese de doutorado, estava sempre focada e articulada com as questões de defesa dos direitos da infância e das mulheres, tanto no Brasil como na Catalunha, e nunca me afastei do compromisso com essa temática no Brasil.

Como foi a sua adaptação à Catalunha? 

Parto do princípio que, ao chegar para viver em outro país, com cultura e língua diferentes, é importante estar aberto, para entender e respeitar a cultura do outro. Sempre procurei evitar oetnocentrismo” e não fazer comparações, mas sim desmitificar estereótipos, fortalecer o respeito pela forma do outro sentir, pensar e atuar, desde seus costumes, idiomas. Apreciar a diferença nos proporciona uma visão mais ampliada do mundo. E isso é “alteridade, sabemos que existem pessoas e culturas singulares, com subjetividades e particularidades próprias, que agem e entendem o mundo de suas próprias maneiras.

Acompanhei a mudança da moeda de Pesetas para o Euro e toda aquela discussão da “imigração não comunitária”, e as discussões dos modelos de convivência, se intercultural ou multicultural. 

Ao chegar a Barcelona, já tinha muitos amigos e amigas, e isso fez uma enorme diferença. O amigo Vicenç Galea (in memoriam), educador social e um grande defensor dos direitos da infância na Catalunha, me mostrou uma Barcelona para além do que os turistas veem, questões, naquela época, muito sérias, como a dos menores imigrantes desacompanhados, a questão de moradia, as ocupações, etc. 

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O que foi o que mais gostou da Catalunha? 

Uma das coisas que mais gostava em Barcelona era de visitar as livrarias. Fiz uma relação com endereços, qual metrô pegar, e passei a frequentar, ficava horas na La Central, Laie, Altair e outras. Procurei conhecer a literatura catalã e logo descobri Mercè Rodoreda, considerada uma das mais influentes escritoras contemporâneas de língua catalã. O seu livro La Plaça del Diamant é uma obra-prima. Assim também descobri Màrius Torres, poeta da transcendência e seu precioso poema a cidade de Lleida (a capital do interior da Catalunha) e, assim como Màrius Torres, tenho um grande apreço pela cidade de Lleida e por sua típica “boira, que me inspirou no momento de terminar de escrever minha tese de doutorado.

Da musica catalã também gosto muito, já que venho de um pais tão rico do ponto de vista musical como é o Brasil (temos a Bossa Nova, por exemplo). Logo que cheguei a Barcelona, passei a apreciar as músicas de Lluís Llach, Sopa de Cabra, Sau, Els Pets, Buhos, Doctor Prats e Txarango, sendo que esse último grupo tem uma das músicas mais preciosas para mim, que é “Tanca els Ulls”.

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Literatura, música…

Não posso deixar de mencionar a rica gastronomia: pa amb tomàquet, escalivada, coca de recapte, botifarra, crema catalana, mel i mató (se for de Montserrat, melhor!). Das festas de Catalunha, gosto muito da Aplec del Caragol de Lleida, uma festa às margens do rio Segre e dos Campos Elisis de Lleida. Essa é uma festa gastronômica em que os caracóis são protagonistas, e Caragols a la llauna é um dos pratos típicos da culinária catalã que mais gosto.

Antes de ir morar em Barcelona, conhecia o conflito político entre a Catalunha e a Espanha?

Conhecia de forma muito superficial, mas quando fui morar em Barcelona, tudo fez mais sentido, e comecei a me interessar pela história da Catalunha, a partir dos comentários que escutava sobre a Diada Nacional de Catalunya, comemorada no dia 11 de setembro, e diziam que os catalães “celebravam uma derrota“. No entanto, o que não se quer reconhecer é o fato de que, mesmo depois de tantos anos, os catalães resistem, e a cada ano celebram a resistência, e não a derrota. A partir disso, fui entendendo cada vez mais o conflito político entre Catalunha e Espanha.

Um conflito cada vez mais presente ao longo da última década…

Acompanhei quando o governo espanhol recortou o Estatuto de Autonomia de Catalunha e, tempos depois, a sentença do Tribunal Constitucional, em 2010, houve uma manifestação de repúdio a essa decisão, com o lema “Som uma nació. Nosaltres decidim”. Somando a isso, o 1º de outubro de 2017 marcou muito a memória coletiva dos catalães, a violência brutal e injustificada do governo Espanhol, posteriormente a aplicação do Art. 155 da Constituição, e a prisão dos líderes da sociedade civil, membros do Governo e do Parlamento da Catalunha, e posterior julgamento dos líderes independentistas, que teve como desfecho uma vergonhosa sentença, além dos exilados políticos. Depois de tudo isso, para parte dos catalães, só resta o “Fem la República Catalana”.

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Como você enxerga o conhecimento que os brasileiros têm sobre o processo independentista catalão?

Com as multitudinárias manifestações realizadas pelo movimento social e político independentista nos últimos cinco anos, a difusão informativa sobre a Catalunha aumentou muito no Brasil, mas muitas das reportagens não conseguem alcançar a profundidade das questões, como a do conflito político entre Catalunha e Espanha, e isso, muitas vezes, causa um estrago informativo, porque as informações divulgadas não correspondem à realidade ampla do conflito.

E como esse conflito poderia ser solucionado?

Os problemas políticos exigem soluções políticas, pontes de diálogo. Que deixem o povo da Catalunha tomar suas próprias decisões, e isso passa, necessariamente, pela participação popular, e não por decisões de um Supremo Tribunal. Então, acredito que um referendo seria o mais adequado para a solução desse conflito, dar o direito a todos os eleitores catalães de decidir o futuro da Catalunha.

Para fechar o tema: que obra de referência você recomendaria para quem quer saber mais sobre os anseios catalães?

O filme L’Endemà, de Isona Passola, e que possui versão em livro, contém textos que abordam a necessidade de conhecermos as questões econômicas e políticas mais profundas que afetam a Catalunha. Ele também apresenta uma reflexão sobre o processo catalão e o processo europeu, explicando que são duas lutas paralelas.

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Acredito que um referendo seria o mais adequado para a solução desse conflito, dar o direito a todos os eleitores catalães de decidir o futuro da Catalunha.

Qual é a relação que você mantém agora com a Catalunha? 

Quando terminei o doutorado tinha um propósito, um sonho, que era criar um Casal Català em Natal para estimular o conhecimento linguístico, difundir o conhecimento cultural e histórico e, assim, promover uma aproximação intercultural entre Brasil e Catalunha, mais especificamente no Nordeste do Brasil. Esse recorte geográfico no Nordeste brasileiro se justifica por já existirem no país outras instituições que trabalham pela promoção da língua e cultura catalãs, como a Associação Cultural Catalonia (presidida por Màrius Vendrell), e o Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (presidida por Esteve Jaulent), que tem como foco a difusão literária.

No ano de 2017, o sonho começou a se concretizar. Reunimos um grupo de pessoas que tiveram e mantêm, assim como eu, uma vinculação com a Catalunha. Fundamos o Centro Catalão de Natal (CNN), objetivando promover e estimular as relações entre as culturas brasileira e catalã, criar uma aproximação com instituições e iniciativas brasileiras que busquem fomentar o conhecimento da língua catalã, e difundir o conhecimento cultural e histórico para promover uma maior interculturalidade entre Brasil e Catalunha.

Em 2019, iniciamos os trâmites na Generalitat de Catalunya, Departament d’Acció Exterior Relacions Institucionals i Transparència, para o reconhecimento do Centro Catalão de Natal como Casal Català – Comunitat Catalanes a l’exterior.

E como você avalia o conhecimento dos brasileiros em relação à cultura e a língua catalã?

É muito interessante ver que, no Brasil, ainda que pontualmente, existem pessoas que se identificam com a cultura e língua catalã. A Catalunha tem fortes e influentes raízes culturais, sua arquitetura, culinária, literatura e o futebol, a exemplo da Penya Barcelonista de São Paulo, que também cumpre uma função de difusão da Catalunha em solo brasileiro, embora seja mais limitada ao seu estado.

Existem algumas curiosidades nessa relação entre Brasil e Catalunha. No estado Amazonas, precisamente em Iranduba, próxima à capital Manaus, existe a comunidade Catalão, uma vila flutuante no Rio Negro, muito encantadora. No estado de Goiás, há um município chamado Catalão, com aproximadamente 110 mil habitantes. No estado do Rio Grande do Norte, há um município com o nome Barcelona.

Por Carla Samon Ros

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