À mesa de formato circular, tal como aquela da Sala Antoni Tàpies, na sede do governo catalão, sentam-se Bolsonaro, Puigdemont, Trump, Assange e Tejero. Claro, um exercício de imaginação sem precedentes, mas útil para a análise deste editorial.
A semana começou com a decisão da Justiça britânica, mais precisamente por meio das palavras da juíza Vanessa Baraitser, de não extraditar o ativista e fundador da Wikileaks Julian Assange. Foi boa a notícia? Sim, mas a principal justificativa, que deveria estar ancorada nas bases da liberdade informativa, revela algo preocupante. Segundo o veredito, o jornalista australiano teve sua extradição negada por causa de seu estado mental, e seria, portanto, “cruel e injusto enviá-lo” para os Estados Unidos. Uma forma de dizer que não o extraditarão por pena, mas que, não fosse esse o caso, a decisão seria bem diferente, e hoje estaríamos falando de um gravíssimo ataque à liberdade de expressão e informação. Uma maneira, também, de dizer aos próximos ‘Assanges’ que pensem duas vezes antes de reportar crimes de guerra ou qualquer fato que atente violentamente contra a humanidade.
Uma alegria que manca, assim podemos definir o primeiro tempo da batalha na Justiça entre Assange e EUA, entre a liberdade e a censura. Logicamente, há limites nessa liberdade que precisam ser respeitados, o que não representa, de maneira alguma, um ato de censura, mas sim de responsabilidade. Inventar notícias é uma irresponsabilidade; omitir informações necessárias é outra irresponsabilidade. Existe um código, uma conduta, uma etiqueta profissional e de respeito aos cidadãos. Porém, o que acontece quando a verdade desafia os neurônios daqueles que usam a emoção como marcador do livro da Constituição?
O que acontece pode ser visto em determinados comentários do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e na reação imediata de seus apoiadores fiéis. Algo semelhante, incrivelmente semelhante, acontece no círculo dos seguidores do futuro ex-presidente americano, Donald Trump. Não é por meio da pólvora (Bolsonaro) e nem por meio da exigência de paralisação da contagem de votos (Trump) que as relações internas e externas serão bem preservadas. Não é por meio de passeatas e mergulhos aglomerados (Bolsonaro), e menos ainda por meio da birra em não aceitar uma derrota originada por vias democráticas (Trump) que a reputação política será preservada. Muito pelo contrário.
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O respeito às vidas e às famílias daqueles que foram vítimas fatais da pandemia deve estar em primeiro lugar. E como esse respeito é posto em prática? Por meio do exemplo praticado e do exemplo discursado. Não é respeitoso afirmar que “nada mais é que uma gripezinha“: isso é um desrespeito à inteligência. Não é respeitoso pedir que os invasores do Capitólio (o Congresso americano) sejam “pacíficos”: o que Trump deveria ter feito de primeira, e não horas depois, era exigir que abandonassem o lugar. Segundo Trump, no Twitter, ele “sabe que seus eleitores se sentem feridos, porque a eleição lhes havia sido roubada, e todos sabem disso”, mas que era preciso “voltar para casa, e respeitar a Lei e a Ordem”.
Desde o anúncio da vitória de Joe Biden, o líder republicano nunca deixou de publicar seu descontentamento com a derrota. A alegação infundada, sem provas concretas de existência de fraude é uma daquelas irresponsabilidades que comentei. Quando levado pela emoção, vemos atos vergonhosos como o de ter uma longa conversa telefônica com o secretário de Estado do estado da Geórgia, a fim de convencê-lo a “buscar os votos” (que dariam a Trump a vitória nesse estado). A gravação da conversa pode ser encontrada nesta notícia publicada pelo The Washington Post.
Que fique claro: essas observações que faço não representam, de modo algum, um apoio ou fanatismo sentido por rivais políticos de Trump ou Bolsonaro. O papel do Aqui Catalunha é, acima de tudo, apresentar informações. É preciso que isso fique claro, a fim de que comentários lamentáveis a uma notícia sobre Bolsonaro e o Tribunal de Haia sejam evitados. Embora este portal tenha por objetivo noticiar a Catalunha, temos a capacidade e a obrigação de estarmos atentos ao que acontece no mundo. De uma maneira ou outra, tudo está conectado, como vocês podem ver neste editorial: cinco pessoas, de países e ideias políticas bem diferentes, sentados à mesma mesa.
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À essa mesma mesa, estão sentados Carles Puigdemont e Antonio Tejero. É provável que vocês já estejam a par do primeiro, mas… quem foi (quem é, já que ainda está vivo, com 88 anos), Antonio Tejero?
Em 23 de fevereiro de 1981, a Espanha viveu 18 horas de caos. Seis anos antes, deu-se início à chamada Transição Democrática, que punha fim ao período de ditadura liderado por Francisco Franco, falecido em 1975. Nesse mesmo ano, Juan Carlos I, o rei que, no ano passado, fugiu da Espanha quando os casos de corrupção que envolviam seu nome vinham cada vez mais à tona, foi proclamado monarca. Em 1978, assentaram-se as bases da Constituição Espanhola.
Em 23 de fevereiro de 1981. O tenente-coronel da Guarda Civil Antonio Tejero liderou o assalto ao Congresso dos Deputados, em Madrid, à frente de um grupo formado por cerca de 200 guardas civis armados. O fracassado golpe de Estado por parte de Tejero, com um revólver na mão, lhe custou 30 anos de prisão por delito de rebelião militar. Caso queiram ver a cronologia dos fatos, confiram este link.
Por outro lado, a realização do referendo de autodeterminação na Catalunha, em 2017, convocado por Carles Puigdemont, foi considerado pelo Estado espanhol como um golpe. Um golpe de Estado, conforme bem explica o site Politize, “acontece quando um governo estabelecido por meios democráticos e constitucionais é derrubado de maneira ilegal – portanto, de uma forma que desrespeita esses processos democráticos”. Como um referendo, por si só, uma das ferramentas mais poderosas para que a voz do povo seja ouvida (e realizado tantas vezes em países como a Suíça), pode ser considerado algo que derrube um governo? O único governo derrubado foi o catalão, por meio da supressão da autonomia da Catalunha por parte de Madrid, via Artigo 155.
Esse “golpe de Estado” ainda é rememorado por Ignacio Garriga, candidato à Presidência da Catalunha pelo partido VOX. Sua principal proposta é destronar as forças independentistas do governo catalão, e “recuperar a Catalunha”. Por falar em VOX, destaco uma mensagem do Twitter, compartilhada pelo jornalista Josep Goded no Facebook. Um dos membros desse partido mostrou seu apoio à invasão ocorrida no Capitólio americano, nesta quarta: “Senhores, não houve golpe de Estado nos Estados Unidos, como estão os progressistas estão chorando, nada disso. Uma grande parte do povo americano está lutando pela democracia, para que se demonstre a fraude eleitoral mais que óbvia”.
Este editorial terminaria no parágrafo anterior, mas a tarefa de quem redige se divide entre escrever e estar atento às notícias mais recentes. Portanto, finalizo mencionando as palavras de Jair Bolsonaro em relação à invasão no Congresso americano: “[Existe] Muita denúncia de fraude. Quando eu falo isso, a imprensa diz: ‘Sem provas, presidente Bolsonaro diz que eleição foi fraudada’. Eu acredito que sim, eu acredito que foi [fraudada] descaradamente”. Ao menos até esta última linha e, à diferença do que fizeram líderes de outros países, que condenaram as cenas no Congresso americano, a única coisa que fez Bolsonaro foi apoiar o pensamento de Trump.