Sociedade mascarada joga futebol na Casa da Colina

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Todo mundo é parecido quando sente dor“. Esse é um fragmento da música O poeta está vivo, do grupo Barão Vermelho. Em quase um ano de pandemia do coronavírus, é isso que temos presenciado. Você não precisa compreender a língua japonesa para entender as linhas tristes no rosto de um cidadão japonês que perdeu um amigo ou familiar. Você não precisa ser um exímio falante de inglês para se revoltar contra as irresponsabilidades do povo e dos governos. A perda nos faz semelhantes, a vitória nos aproxima, e todos sentamos à mesma mesa: a mesa dos humanos.

Enquanto milhares e milhares de pessoas deixam de viver, e enquanto outros milhares e milhares lamentam e se preocupam, a “vida normal” tem sido posta na escada rolante que leva ao seu pleno estabelecimento. O problema é que essa escada rolante tem graves defeitos. O primeiro deles está no primeiro degrau dessa escada, que é a concepção de “vida normal”.

O que é ter uma vida normal? Façamos uma lista: sair para passear, andar de bicicleta, fazer compras, ir a um restaurante, namorar no parque, ir à praia, fazer fofoca na calçada, jogar futebol em um terreno abandonado… A lista é enorme, mas há um item que não está presente nela: a máscara. Não precisamos dela para nenhuma dessas atividades da vida normal.

É bom, positivo e necessário ter a vontade de voltarmos a fazer o que fazíamos. Se, para você, fazer tudo isso é ter uma vida normal, muito bem. Estamos de acordo. Entretanto, ao redor desses hábitos tão comuns, corriqueiros e banais, há engrenagens sistemáticas disfarçadas de orquestra.

Uma dessas engrenagens é a do esporte. Praticá-lo é bom, praticá-lo é saudável, praticá-lo é uma delícia. Porém, quando constituído como espetáculo, passamos a falar de um programa acompanhado por milhões de pessoas. Às vezes um vício, às vezes uma mera distração, sempre empresarial. Sempre o Fucking Money.

Nosso foco nesta publicação é o futebol. Retorno das competições nacionais e da Champions League na Europa, volta dos torneios estaduais e do Campeonato Brasileiro. Até que ponto (ou até que degrau daquela escada rolante) valem a pena essas voltas? As arquibancadas dos estádios estão vazias, e essa é uma condição cujo fim é imprevisível, mas isso não foi considerado empecilho algum para a realização dos jogos. “Não estão no estádio? Isso não é bom para o bolso, mas damos um jeito de manter o espetáculo“. Até que ponto ou até qual algarismo?

Lembram das engrenagens sistemáticas? Desde o século passado, as do futebol funcionam a todo vapor, especialmente às quartas, aos sábados e aos domingos. Mas, durante pouquíssimos meses, sentimos o gosto do que é passar um tempo sem notícias e transmissões de jogos. De uma forma sincera, como essa ausência te afetou? Como seria a sua vida sem futebol?

Para muitos cidadãos, uma vida sem futebol não seria, em hipótese alguma, uma vida normal. Por quê? Porque, para eles, um jogo de futebol é, também, uma reunião com os amigos, uma ida ao estádio, um churrasco, uma chance de provocar rivais e, acima de tudo, um encontro amoroso com o time preferido. Teriam “um desgosto profundo”, conforme cantado no hino do time treinado pelo catalão Domènec Torrent.

O cumprimento do calendário esportivo, tal como o de um cronograma empresarial, olha o que há ao redor, e ignora o poder que tem. Os olhos empresariais se movem, as pernas atléticas galopam, as bocas dos comentaristas fedem, e os macacos batem palmas como pessoas no circo. Todos põem a máscara, não a que protege contra o vírus, mas uma que tapa os olhos.

Quem assistia ao programa musical Ídolos deve se lembrar de um dos episódios mais divertidos, protagonizado por um candidato que cantava Casa da Colina. Em sua apresentação, que arrancou muitas risadas, André Mercury cantou assim: “A casa é má, baby, Lá tem fantasmas, iea ie, É mal-assombrada, pi uí, Fantasmas moram Na casa da colina! Vou passar um dia nessa casa cheia de espíritos Yea! Uhh! Vai levar muitos sustos, Não vai ter futebol, Casa mal- assombrada, yea yea, Casa mal-assombrada, Casa da colina, Eu vou passar um dia nessa casa cheia de espíritos!

A letra da criação bizarra de André Mercury deixa claro: “Não vai ter futebol nessa casa mal-assombrada”. Jamais havíamos imaginado usar essa letra em uma publicação como esta, mas… quanto sentido tem essa ligação! Fazendo pequenas mudanças na letra de André Mercury, temos o seguinte: milhares e milhares de mascarados (do queixo até a testa) jogando em um terreno escuro, sendo assistidos por outros mascarados que usam a luz dos celulares como holofotes de um grande estádio. Não, não é um estádio! É um lugar mal-assombrado, onde ninguém deveria estar jogando futebol, onde ninguém deveria estar para assistir apresentação alguma! Entretanto, todos gritam “Vai ter futebol!”, e que “Vamos passar uma temporada nessa casa cheia de espíritos!”.

Se você não pode ser forte, seja pelo menos humana” (mais uma vez, da música O poeta está vivo). Não estão sendo fortes, e não estão fazendo o menor esforço para ser humanos. Até quando a importância para determinadas engrenagens sistemáticas será mais importante e comentada que a real necessidade de cuidar de vidas? Que país é esse? Que mundo é esse?

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