Por Flávio Carvalho, sociólogo e escritor
“A arte existe para que a realidade não nos destrua”. Nietzsche
Um Sarao, assim em castelhano, é uma muvuca, uma bagunça… Um furdunço, ouvi certa vez em Olinda. Na Catalunha eles são sempre bem organizados, por mais que acabem em um grande carnaval.
Agora, os saraus estão de moda em Barcelona. A poesia está de moda na vida noturna da capital catalã. Poesia feminista, por exemplo, ainda mais. Os saraus brasileiros também.
Danilo é três Pês: pernambucano, poeta e percussionista. Não para de participar e organizar recitais. Ana, pernambucana e percussionista também. Flávio, o que lhes escreve, também pernambucano (evidentemente!) organiza, nesta quinta-feira, a décima edição de Sarau Brasileiro – desta vez, de volta ao bar e restaurante Panela de Barro (caipirinha excelente, imprescindível; petiscos e pratos como se feitos pela mãe da gente). Saudade é ingrediente fundamental. Além de poesia, os saraus contam sempre com bons músicos. “Barcelona tem mais músicos brasileiros do que gente!”. Cada dia uma roda de samba, de gafieira, de choro; aquilo que deixa os catalães impressionados quando são convidados a ir a uma festa brasileira para… “chorar”! E então, reina a alegria. Valter Guerra, exímio violonista de sete cordas, só faltava ser pernambucano (é mineiro bom). O último sarau acabou com frevo: Mancha Negra, no saxofone – adivinhem de onde ele é… Também se leem trechos de livros. O da pernambucana Taíza, “Catalunha, entre a esperança e a tempestade”, já é um clássico. Tudo a ver.
Mas só há pernambucanos na Catalunha? Não, claro que não. Entre os quase vinte mil brasileiros empadronados (regulares ou irregulares) somente na Catalunha – e não param de chegar! – os pernambucanos agora dizem que são unidos como “uma corda de caranguejo”. Maracatu aqui não falta. Pena que Ana está de malas prontas pra voltar à Camaragibe. Mas quem duvida que novas Anas virão? Pois não poderia ser diferente: a maioria quantitativa e qualitativa está sempre composta de grandes mulheres, artistas, trabalhadoras, guerreiras (da paz). O grupo mais ativo se chama Brasileiras contra o Fascismo. Com elas, Bolsonaro estaria mais irritado do que na Assembleia da ONU.
Mas, alegria, alegria! A graça dos saraus é o famoso Microfone Aberto. No começo, os organizadores avisam: nos últimos momentos, todos os envergonhados, arrependidos, pedirão para recitar o seu poema, será tarde da noite, e passarão dias aguardando a próxima edição. O formato itinerante cria magia, mistério, descobrimento… Pouco se sabe onde e quando será a próxima edição.
Também aparecerão contadores de estórias, cantoras à capela, narradores de cordel, poesia dos países de língua portuguesa, inglesa, gauchês e até um occitano. Sem falar nos sotaques diversos desse Brasil imenso. Isso sim: todos ligados em um respeito único, pela emoção. Não estão feitos para serem entendidos. Estão feitos para serem sentidos. Lágrima se explica? Linguagens sem fronteiras, gritos de liberdade, expressão corporal, teatralidade, mística, telefones celulares na mão, memórias regidas pela métrica poética e um grande achado: declamar letras de velhas músicas como poemas, ajudando a que as pessoas passem a olhá-las com um novo olhar. Geni, a do Zepelin, sempre aparece, num Chico Buarque revisitado. “Um índio”, de Caetano, quase sempre. Na maioria das vezes com um cavaquinho de fundo, um violão acústico, aquela bossa nova, pandeirinho, chocalho, clarinete… Ou simplesmente regidos pelo silêncio. Quem manda, cinquenta e um por cento, acionista majoritário, é o improviso.
Até agora está ganhando o Soneto da Fidelidade – desde que foi inaugurado por nossa deputada poeta (ou será ao contrário?). Mas aparece Olavo Bilac, García Lorca (em castelhano, com todo respeito que merece), Elisa Lucinda, Renato Russo, Virginia Wolf, Clarice…
O segredo é alternar música e poesia. Mas onde acaba uma e começa a outra?
“Sinto o canto da noite na boca do vento fazer a dança das flores no meu pensamento”…
Os livros vem debaixo do braço, páginas marcadas. Já veio carta perfumada, poema de amor. Livro lançado no próprio sarau. E poemas compostos especialmente para o Sarau. Como este, que aqui os deixo:
I ara, e agora, menina?
Sara? Vamos ali com Iara, no Sarau?
Lá, o ambiente, cachaça, inspira.
Poesia que se respira, fica. Não passa.
Cara, vamos lá, com Saulo? Vamos, Paula? Vai ter Paraula. Vai ter Sarau.
Esta noite, onde será? O que será? Anda nos becos? Anda nas bocas?
Não quero nem saber. Mas eu vou lá. Numa boa.
Pode ser em Gràcia, grátis, cerveja barata, no Passeig de Sant Joan ou em João Pessoa.
Irei pelo cheiro. Pelo poema. Pelo pinho. Pela pena. Pelas Clarices, pelos Pessoas.
Tudo vale a pena se a alma… é Sarau.
Vamos lá, Iracema?
Que tal?
Serviço: Sarau do Panela.
Quando e onde? Bar e Restaurante Panela de Barro, Barcelona. Quinta-feira, 26 de setembro, 21h. Com Valter Guerra e Flávio Carvalho. Microfone aberto, poesia, literatura e caipirinha.
Para seguir informação sobre todas as próximas edições de Saraus: @quixotemacunaima
Flávio Carvalho, nascido em Recife, é um sociólogo que vive em Barcelona desde 2005. Seu perfil profissional pode ser acessado aqui. Em julho de 2019, lançou seu mais novo livro, Paraula.