Você fala neurodivergente? A ficção social das normas comunicativas

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“Aquilo pesa como um ovo”, diz uma criança enquanto tenta levantar um galho ao lado do riacho. O Otter sorri e responde: “Mas se um ovo não pesa nada!” Eu também sorrio. O Otter é autista e, através das minhas lentes de linguista, adoro observar como ele interpreta a linguagem. Mais tarde, pergunto se ele se lembra da frase. Ele não responde, mas sei que está me ouvindo. Quando pergunto o que a criança queria dizer, ele diz: “Um ovo não pesa, ele se enganou.” Explico o significado do ditado. “Ok”, ele responde antes de sair correndo. Agora sei que esse “ok” é a maneira dele dizer que entendeu e que a conversa pode acabar. Também sei que ele vai se lembrar de cada palavra. Quatro anos atrás, teria me esforçado para corrigir esse “mau comportamento”, mas hoje tenho uma perspectiva bem diferente.

Por razões pessoais e profissionais, a neurodivergência tem sido objeto de minhas leituras e conversas há algum tempo atrás. Este conceito, cada vez mais visível nas redes sociais, refere-se às pessoas que têm um funcionamento neurológico diferente do considerado majoritário ou “neurotípico”. Inclui, por exemplo, o autismo, o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), a dislexia, a discalculia ou as altas habilidades. É preciso distinguir o conceito de neurodivergência do de neurodiversidade, que engloba também a manifestação neurológica considerada majoritária ou típica. Tornar visível a neurodiversidade (ou “diversidade de cérebros”), como frequentemente fazemos com a diversidade linguística, nos lembra que não há uma única maneira correta de pensar, sentir ou se comunicar. Cada idioma nos oferece uma visão única do mundo; cada cérebro, uma maneira diferente – e igualmente válida – de processá-lo, pois comunicar não depende apenas do código que utilizamos. Mas o que nos faz temer tanto os estilos de comunicação fora da norma?

Cada vez mais estudiosos têm analisado essa pergunta e outras relacionadas à comunicação neurodivergente. Um deles é o sociólogo autista Damian Milton, que descreveu o que chama de “o problema da dupla empatia”: quando duas pessoas com neurotipos diferentes – por exemplo, uma neurotípica e outra autista – se comunicam, podem ter dificuldades para se entender. Inicialmente, esse fenômeno era interpretado como falta de empatia por parte da pessoa com uma expressão não majoritária (neste caso, o autista). Hoje sabemos que, na realidade, a dificuldade está no uso de códigos sociais diferentes. E é que ser neurodivergente muitas vezes se assemelha a vir de outra cultura. Por isso, há aqueles que se sentem mais bem acolhidos vivendo no exterior: lá, as diferenças são associadas ao fato de ser “de fora”, e não a uma desvio da norma. Chegados a este ponto, talvez devamos admitir que o que consideramos a norma comunicativa, bem examinado, nada mais é do que uma ficção social.

Embora todas as sociedades estabeleçam normas de comunicação – desde regras gramaticais até sotaques legítimos, passando por idiomas oficiais e registros e comportamentos sociais adequados a cada situação -, essas normas não são neutras, mas fruto de processos históricos e políticos que determinam o que é concebido como correto. Tudo o que se desvia disso, seja pela escolha linguística, pelo estilo de conversa ou pela estrutura cognitiva subjacente, muitas vezes é marginalizado. Em um artigo do ano passado, o linguista autista Gerald Roche falou sobre a “fenda da morte” dos autistas, referindo-se a uma menor expectativa de vida devido às dificuldades na comunicação (entre outras coisas), comparando essa realidade com a de falantes de línguas minoritárias. Basta pensar em uma visita médica em que paciente e profissional não compartilham o mesmo idioma inicial, o que pode ter um efeito negativo significativo na adequação da ajuda médica. No caso de um paciente autista, pode ocorrer uma situação semelhante: se ele evitar contato visual, responder com monossílabos ou não expressar a dor da maneira esperada, um médico pode interpretar esses comportamentos como sinais de desinteresse, frieza emocional ou até ausência de dor, quando na realidade o paciente está sentindo desconforto, mas o comunica de forma diferente.

Exemplos como esses indicam que a diversidade linguística e a neurodiversidade se deparam com o mesmo inimigo comum: a ignorância das realidades diversas ou a falta de sensibilização da população em relação a elas. Como já mencionamos anteriormente, as diferenças na comunicação de pessoas neurodivergentes muitas vezes são mal interpretadas porque não se encaixam nos padrões sociais dominantes.

Uma expressão comum na neurodivergência, mas pouco conhecida fora do âmbito especializado, é a ecolalia. Consiste em repetir enunciados ouvidos anteriormente e seu uso é frequentemente percebido como uma dificuldade ou fruto de baixa capacidade cognitiva. Além desses preconceitos, pode ser uma maneira rica e significativa de expressar emoções, referências culturais ou demandas. A ecolalia pode ser imediata (quando é repetida imediatamente) ou diferida (quando é feita depois de um tempo). Quanto à população em geral, também podemos encontrar usos ecolálicos em um sentido amplo, quando, por exemplo, recitamos frases feitas, citações conhecidas, provérbios, trechos de músicas ou falas de séries e anúncios para expressar uma ideia ou uma emoção. Esse uso de linguagem pré-fabricada é muito comum e socialmente aceito, mas não recebe o nome de ecolalia porque não está associado a nenhuma diferença neurológica. Mesmo assim, a linha é mais tênue do que se costuma pensar, e reconhecer isso pode nos ajudar a tirar o estigma dessa forma de comunicação em pessoas neurodivergentes.

Por outro lado, existem expressões mais conhecidas, por serem bastante comuns a todos os neurotipos, como as interrupções frequentes ou mudanças abruptas de assunto. Geralmente, são interpretadas como falta de educação ou de respeito. No entanto, por trás desse comportamento pode haver uma mente que processa informações muito rapidamente e tem dificuldade para conter ou reter ideias durante uma conversa. Esse padrão é comum em pessoas com TDAH, mas também pode ocorrer em outros perfis com pensamento rápido ou divergente como as altas habilidades e em qualquer pessoa (neurodivergente ou não) quando está especialmente excitada ou emocionada. Em vez de frear essa expressão – que pode ser vigorosa, criativa e genuína -, devemos entendê-la como outra maneira válida de participar e incentivar espaços comunicativos mais flexíveis.

Depois de tudo o que foi dito, é evidente que como sociedade temos muito a aprender. Pessoalmente, comecei a trilhar esse caminho quando minhas circunstâncias de vida me empurraram nessa direção. Além disso, passei de ser espectadora das expressões da neurodivergência dos outros para identificar e valorizar minhas próprias peculiaridades. Esse (auto-)conhecimento não é apenas útil, mas necessário para poder voltar à essência do que significa comunicar: fazer-se entender e entender o outro. Em última análise, precisamos nos conectar como prioridade em uma sociedade cada vez mais individualista. Assim, por experiência própria, posso dizer que se começarmos a “ouvir” a diferença com atenção, abrimos caminho para a convivência real de todas as diversidades.

**Alina Moser** é membro do Grupo de Linguistas pela Diversidade (GLiDi).

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