Por Flávio Carvalho, sociólogo convidado
Rosalía é de Sant Esteve Sesrovires, SES. Nesta cidade, bem perto do Pueblo onde eu moro, estive algumas vezes: pra ver meu amigo Antonio, que gosta de Raul Seixas como eu, pra comprar um excelente cava – o champanhe catalão – e pra visitar as duas dezenas de brasileiros que cumprem pena na prisão de Brians 1 e 2. Na prisão (fora dela; não dentro), conheci uma tia de Rosalía. Anos atrás, antes de ela, Rosalía, tornar-se a primeira pessoa do Estado Espanhol a ganhar um dos mais importantes prêmios da MTV.
Rosalía conseguiu entrar e sair ilesa de três polêmicas, o que demonstra muito de sua forte personalidade. Primeiro tentaram lhe atacar, os conservadores, por não fazer Flamenco tradicional. Grandes nomes do Flamenco, como Camarón e Morente, já passaram pelo mesmo. La Leyenda del Tiempo e Omega são, sem dúvida, discos ousados e transgressores. Talvez foram menos atacados por serem homens e haverem vivido em outra época. De Camarón, a propósito, recomendo ler tudo sobre o brasileiro Ruben Dantas e a polêmica que se derivou quando o brasileiro introduziu (sim! O baiano!) a percussão, o cajón flamenco (e, segundo a lenda, um pouco de maconha – como se visualiza no genial documentário Tiempo de Leyenda), graças a Paco de Lucía: o cajón e não a maconha, pra não confundir. Depois tentaram, sem sucesso, envolver Rosalía na polêmica sobre a opressão – minha opinião – do Estado Espanhol sobre os independentistas catalães (presos políticos incluídos). Diplomática, nunca renegou suas origens catalãs e responde entrevistas nos três idiomas: catalão, castelhano e inglês. Importante lembrar que não faz muito – em perspectiva histórica – que o catalão foi idioma proibido na Espanha. E que ainda hoje a União Europeia recebe queixas de ser tratado, o catalão, como uma língua minoritária e secundária, apesar de ser um idioma oficial e falado por milhões de cidadãos do mundo. Interesses políticos, ainda segundo minha opinião, do fortíssimo nacionalismo espanhol (mais forte que o catalão, tal como lhes posso assegurar pelos anos em que aqui vivo). Barcelona é palavra forte. Em certa medida mais famosa que a palavra Catalunha (por ser dela a capital). Rosalía sabe, como poucos, usar essa marca: Barcelona. Agora já não se sabe quem é mais promocional que quem: Barcelona ou Rosalía. Certamente uma via de mão dupla.
Sobre a terceira polêmica, já quando a conheci, a Rosalía – quando ainda apenas vestia aquilo que em Recife chamamos “esquentes esportivos” (agora as grandes marcas pagam para que ela vista o que elas querem), comentou-me sua tia. O Mal Querer, seu disco de estreia, fala do “amor obscuro”, deixando entrever o quanto uma relação tóxica pode atrapalhar – ou condenar – a vida de uma adolescente. Rosalía nunca se expressou abertamente sobre haver sofrido esse tipo de violência, nem física, nem simbólica. Mas o movimento mundial de empoderamento das mulheres e de denúncia dos machismos ajudou ou foi ajudado, sutilmente, subjetivamente, também pelo fenômeno Rosalía. Novamente a pergunta: quem ajuda quem? Em Barcelona, participando de uma roda de debate sobre feminismos e cultura juvenil, conheci Bad Gyal, outro fenômeno, mulher, catalã. Alba (assim me apresentaram, não pelo seu nome artístico), essa jovem cantora e compositora, ajudou-me a entender e a gostar de Rosalía – e dela. Em princípio, o Trap, gênero musical, e o Flamenco contemporâneo que pratica Rosalía, não seriam músicas que me despertariam grandes interesses. Confesso que fui atraído mais pelo conteúdo (letras e atitudes) que pelas formas (pelo ritmo musical). E quero concluir esse texto de apresentação dessa nova representação da música catalã, que eu mesmo encaixo perfeitamente na definição plural dos novos feminismos (com ou sem permissão das mencionadas artistas – a mim, pouco importa e penso que a elas também), com uma curiosa e gratificante observação. Fui recentemente convidado a voltar à prisão de Brians 2, em Sant Esteve Sesrovires, terra de bom cava catalão – plantado aos pés das melhores vistas da minha montanha mágica preferida, Montserrat – e berço de Rosalía, mais uma da Catalunha para o Mundo. Irei. Assistirei a um espetáculo de final de curso de teatro musical. Nele, nesse espetáculo – “terapêutico”, segundo a “interna” que me convida – participa uma brasileira que conheci na mesma época em que conheci Bad Gyal e Rosalía. Ela dançará Rosalía. Despido de preconceitos, eu também.
Flávio Carvalho, nascido em Recife, é um sociólogo que vive em Barcelona desde 2005. Seu perfil profissional pode ser acessado aqui. Em julho de 2019, lançou seu mais novo livro, Paraula.