O estado espanhol parece ter dado um passo muito largo ao permitir que um juiz, que passa o dia todo diante do espelho a olhar somente para ele mesmo, destrua o pacto da Moncloa. E o que era ameaça virou realidade: a Catalunha não goza mais de autonomia. A intervenção por meio do art. 155 da constituição espanhola começou com ares de que era uma medida legal, que atendia à constituição de 1978; em outras palavras, seguiria dentro da lei. Dissolveu-se e derrubou-se o governo autonômico. Rajoy assumiu a governança e promoveu eleições limpas – no conceito do governo central – ganhas pelos independentistas. Após mil e quinhentas idas e vindas, o Parlament faz a sessão de investidura. Alguns trotskistas boicotaram o processo, e Jordi Turull não pôde ser eleito por falta de um voto, o que obrigou Torrent, presidente da instituição, transferir a sessão para o sábado, 24 de março. O intervalo de 48 horas foi o suficiente para a Justiça mandar prender Turull, com uma esdrúxula alegação de perigo iminente de reiteração delitiva. O governo central imediatamente inicia as ameaças a Roger Torrent, ordenando a suspensão da sessão de investidura, numa clara alusão à ideia de que, apesar de serem maioria, os independentistas não poderiam formar governo. Para não agravar ainda mais a situação, Torrent suspendeu a investidura, e manteve a sessão como um ato de repulsa ao encarceramento daquele que seria o próximo presidente da Generalitat de Catalunya, e também de outros quatro líderes políticos independentistas.
Pelo que é comentado nas ruas e bares de Barcelona, para cada deputado que se apresente como candidato lhe será imputada uma denúncia, e dessa forma, haverá um momento em que não haverá mais o número de deputados independentistas suficiente para manter a maioria soberanista. Notando o estrago causado à democracia por suas intransigências, Xavier Domènech, do partido Catalunya en Comú, pede uma “frente democrática” ante à repressão judicial, no que foi secundado por Miguel Iceta, do PSC. Por outra parte, Puigdemont tem dado uns passos que parecem não estar sendo bem compreendidos pelos parceiros do partido ERC, e essa última viagem à Finlândia, ao que tudo indica, pode ter sido uma armadilha que lhe montaram à raiz do pedido de captura internacional, pedido esse feito pelo juiz Pablo Llarena. Puigdemont teve que voltar para a Bélgica às pressas e às escondidas. Nos meios de comunicação, especula-se que o deputado que o convidou a ir à Finlândia não foi encontrado, o que reforça a hipótese de armação. Não podemos esquecer, tampouco, o episódio envolvendo o cônsul finlandês recentemente afastado do cargo que exercia em Barcelona, justamente pela denúncia que a Espanha fez à Finlândia.
Definitivamente, a democracia não vive bons tempos em lugar algum no mundo, e já há quem diga que o mais prudente para os independentistas seria formar um governo de coalizão, em parceria com os partidos previamente citados, a fim de afastar de uma vez essa ameaça constante e reiterada do judiciário ao processo democrático. Ou então, partir definitivamente para o confronto, arcando com todas as consequências. O tempo urge.
_ Texto de Manoel Lucas, correspondente do Aqui Catalunha em Barcelona