O dia 2 de julho de 2019 ficou marcado como a data em que milhares de cidadãos viajaram da Catalunha para Estrasburgo, na França, para defender os direitos políticos de Carles Puigdemont, Toni Comín e Oriol Junqueras. Ao todo, 10 mil cidadãos protestaram diante da sede do Parlamento Europeu em defesa dos direitos políticos dos líderes catalães que, nas eleições para a Câmara europeia, obtiveram, juntos, mais de dois milhões de votos, mas não puderam estar presentes na sessão constitutiva dessa terça-feira. Eram esperados 751 eurodeputados, mas três cadeiras estavam vazias.
O Aqui Catalunha preparou um resumo cronológico para que os leitores brasileiros e demais falantes de língua portuguesa entendam – e relembrem – os acontecimentos que levaram à organização da multitudinária manifestação em Estrasburgo.
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Resumo do conflito entre Catalunha e Espanha
Em junho de 2017, Carles Puigdemont, então presidente da Catalunha, anunciou a convocação do referendo de autodeterminação. Após diversas tentativas de negociação com o governo espanhol, liderado por um Mariano Rajoy que se mostrava rigidamente avesso à ideia de que os catalães pudessem decidir seu próprio futuro, o governo catalão deu um passo à frente. A pergunta que deveria ser respondida nas urnas era: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente em forma de República?”. Ao longo dos meses posteriores ao anúncio de Puigdemont, o governo do Estado espanhol, por meio de diversos recursos, especialmente os jurídicos, tentou impedir a realização do referendo, como pode ser visto nesta publicação.
Finalmente, no dia 1º de outubro daquele ano, milhões de eleitores foram às urnas. A votação ocorreu em um clima de insólita perseguição política, jurídica e policial. As imagens e vídeos da violência dos policiais espanhóis contra civis, que apenas queriam votar, deram a volta ao mundo. Mais de 90% dos eleitores haviam votado a favor da independência da Catalunha. Porém, no dia 16 de outubro, a juíza Carmen Lamela decretou a prisão preventiva sem fiança de Jordi Sànchez, então presidente da Assembleia Nacional Catalã (ANC), e de Jordi Cuixart, presidente da Òmnium Cultural. De acordo com a magistrada, os dois líderes foram responsáveis por liderarem “a rebelião e a sedição” diante do Departamento de Economia da Generalitat de Catalunya em 20 de setembro. É preciso, porém, saber o que realmente houve no dia. Naquela data, 40 mil pessoas se reuniram diante do edifício público para protestar contra a detenção considerada “ilegal” de membros do governo da Catalunha no próprio prédio. Outras instituições governamentais catalãs também haviam sido alvo das ações policiais, cujo objetivo era impedir, a qualquer custo, a realização do referendo. A manifestação contra a atuação do governo espanhol, embora intensa, foi pacífica e de resistência. Não aos olhos, entretanto, da Guardia Civil espanhola, que disseram ter presenciado “episódios de violência organizada” por parte dos manifestantes, configurando, na visão policial e, posteriormente, da Promotoria de Justiça espanhola, um “grave delito de rebelião e sedição”, que teria sido promovido e dirigido pelos dois líderes civis em questão, Jordi Sànchez e Jordi Cuixart. Desde 16 de outubro de 2017, ambos são mantidos em prisão preventiva.
Seis dias antes, em 10 de outubro, 72 deputados independentistas assinaram a declaração de independência da Catalunha, que foi automaticamente suspensa, pois Carles Puigdemont buscava uma via dialogada e negociada com o Estado espanhol, como havia recomendado, momentos antes da sessão parlamentar daquele dia, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. Segundo Tusk, uma declaração unilateral de independência “impossibilitaria qualquer diálogo”. Esse diálogo, como pôde ser visto nos últimos meses de 2017, ao longo de 2018 e no primeiro semestre de 2019, não houve.
Em 27 de outubro, o Parlamento da Catalunha, então presidido por Carme Forcadell, revogou a suspensão da declaração de independência da Catalunha, e proclamou a independência. Aquele ato, porém, desencadearia uma sequência de respostas do Estado espanhol aos independentistas. Imediatamente após a proclamação, o governo da Espanha suspendeu o governo catalão por meio da aplicação do Artigo 155. Carles Puigdemont e Oriol Junqueras (respectivos presidente e vice-presidente do governo da Catalunha) e demais membros do governo foram cessados, e eleições para a constituição de um novo governo catalão foram convocadas por Mariano Rajoy. Antes das eleições, no fim de outubro, Puigdemont e alguns secretários de seu governo se exilaram na Bélgica, onde começaram a internacionalizar a causa independentista catalã e a denúncia, também a nível internacional, contra o governo da Espanha. No dia 2 de novembro, viria mais um duro golpe: a juíza Carmen Lamela decretou a prisão preventiva de Oriol Junqueras, Jordi Turull, Josep Rull, Meritxell Borràs, Raül Romeva, Carles Mundó, Dolors Bassa e Joaquim Forn, todos membros do governo de Puigdemont. Em 5 de dezembro, Bassa, Borràs, Mundó, Romeva, Rull e Turull obtiveram liberdade condicional. Junqueras e Forn, por sua vez, foram mantidos na prisão, pois de acordo com o juiz Pablo Llarena, a liberdade condicional de Junqueras e Forn comportava um “risco de reiteração delitiva”.
As eleições de 21 de dezembro de 2017 tinham um objetivo claro: garantir que a nova formação governamental na Catalunha atuasse “de acordo com a Constituição espanhola”. O resultado, porém, não foi o esperado pelo governo espanhol. Os independentistas venceram, e Carles Puigdemont deveria ser eleito, novamente, presidente. A euforia dos defensores da independência da Catalunha durou pouco.
O conflito continua em 2018
Os três primeiros meses marcaram o início de um novo ciclo de incertezas. Com Puigdemont impedido de assumir a presidência da Catalunha, já que a Constituição espanhola não permitia uma tomada de posse à distância (o líder catalão não podia voltar para a Catalunha, pois seria detido), outros nomes foram cogitados para o cargo: Jordi Sànchez, na prisão desde outubro de 2017, e Jordi Turull.
No dia 23 de março, a lista de líderes independentistas catalães enviados à prisão aumentou com os nomes de Jordi Turull, Josep Rull, Raül Romeva, Dolors Bassa e Carme Forcadell. Os quatro primeiros voltavam à prisão após Pablo Llarena afirmar que “havia um risco de fuga e reiteração delitiva”. Carme Forcadell foi presa por haver permitido um debate parlamentar sobre a independência da Catalunha. Seu ato foi considerado um “delito de rebelião”.
A Generalitat de Catalunya ainda estava sob a influência da aplicação do Artigo 155. Delegações do governo catalão foram fechadas, e a vitória nas eleições de 21 de dezembro não havia servido para recuperar o controle. Enquanto isso, Carles Puigdemont participava de debates em alguns países da Europa, contribuindo, assim, para a internacionalização da causa catalã. Dois dias após as prisões de ex-membros de seu governo, Puigdemont foi detido por autoridades alemãs quando passava da fronteira entre Dinamarca e Alemanha. O líder catalão, no dia anterior, havia participado de uma conferência na Finlândia, e seu plano era retornar imediatamente à Bélgica, onde estava exilado. Como não poderia ser diferente, o governo espanhol celebrou a detenção, e aguardava a extradição de Puigdemont. Diversos documentos foram enviados pela Justiça espanhola para a Alemanha, onde Puigdemont seria julgado.
As expectativas espanholas foram frustadas, já que o tribunal alemão de Schleswig-Holstein descartou a ocorrência de delito de rebelião, crime pelo qual era acusado Puigdemont. A decisão alemã foi um sério golpe contra os planos espanhóis. O juiz Pablo Llarena decidiu retirar a ordem europeia de detenção que havia ativado contra Puigdemont e os demais exilados.
Na Catalunha, o Parlamento, por meio dos votos a favor dos deputados de JxCat e ERC, elegeram Quim Torra novo presidente do governo catalão. Com a nova liderança, o Artigo 155 perdia seus efeitos, e a Generalitat de Catalunya recuperou sua autonomia, ainda que de forma muito limitada, como podemos comprovar com base em acontecimentos ao longo de 2018 e deste 2019. No dia 10 de julho, o juiz Pablo Llarena suspendeu os cargos de seis deputados do Parlament de Catalunya, entre eles Carles Puigdemont.
O ano de 2018 também foi marcado pela queda do líder do governo espanhol Mariano Rajoy. Seu comprovado envolvimento em um grande esquema de corrupção que ficou conhecido como “caso Gürtel” fez com que o PSOE, por meio de Pedro Sánchez, apresentasse uma moção de censura. Sánchez assumiu o governo espanhol, e um de seus primeiros atos foi se reunir com o novo presidente da Catalunha. Quim Torra tinha por objetivo incluir a autodeterminação catalã na agenda de conversas com Sánchez, mas fracassou. O novo chefe do Estado espanhol se apegava ao “Lei e diálogo”, recusando, assim, qualquer possibilidade de que a questão catalã fosse a tona como queria Torra.
E em 2019?
Os líderes independentistas catalães enfrentaram quatro meses de julgamento no Tribunal Supremo. Sobre eles pesa uma solicitação de pena de mais de 200 anos de prisão. Embora um importante grupo da ONU tenha publicado um documento em que era exigida a liberdade dos líderes independentistas, a Justiça espanhola a negou, e não seguiu a “exigência”.
No mês de abril, foram realizadas novas eleições espanholas, que haviam sido convocadas por Pedro Sánchez após a falta de aprovação orçamentária. Sánchez venceu, mas até a data desta publicação, não foi oficialmente empossado, e tem dificuldades para conseguir suportes. Existe a possibilidade de que novas eleições sejam convocadas (possivelmente para o dia 10 de novembro).
Nas eleições municipais e europeias, realizadas em maio, o independentismo catalão conseguiu ótimos números, e mostrou que continua crescendo. A notícia negativa veio das atitudes do Parlamento Europeu em relação a Carles Puigdemont e Toni Comín. Ambos, eleitos como novos eurodeputados, haviam sido impedidos de entrar no edifício do órgão político europeu quando planejavam recolher suas credenciais como novos membros do Parlamento. Alguns meses antes, Puigdemont foi impedido de realizar uma conferência no Parlamento Europeu, ao lado de Quim Torra, pois, de acordo com o então presidente da Câmara, Antonio Tajani, “a presença dos líderes catalães representava um risco para a segurança local”.
Apesar do êxito nas eleições europeias, Puigdemont e Comín não puderam participar da sessão constitutiva no Parlamento Europeu, celebrada nesse 2 de julho. A Junta Eleitoral Espanhola enviou uma lista dos eurodeputados eleitos e que haviam jurado a Constituição, em Madrid. A situação dos dois líderes catalães os impediu de viajar à capital da Espanha para o ato, já que, se o fizessem, seriam detidos. Porém, seus nomes haviam sido publicados na lista do Boletim Oficial do Estado que continha a identificação de todos os candidatos que haviam sido eleitos eurodeputados. Em outras palavras, tanto Puigdemont quanto Comín e Junqueras foram proclamados eurodeputados. Essa lista, porém, não fez a menor diferença. A relação de nomes considerada válida pelo Parlamento Europeu foi a emitida pela Junta Eleitoral, que não continha os nomes dos líderes catalães. O caso de Junqueras difere da situação dos dois exilados. Junqueras sequer conseguiu liberdade provisória para jurar a Constituição, e ser, oficialmente, novo eurodeputado. Se isso acontecesse, adquiriria imunidade parlamentar, e não mais poderia estar em prisão preventiva.
Na semana passada, Antonio Tajani declarou que “não estava em condições de tratar Puigdemont, Comín e Junqueras como eurodeputados”. A saída encontrada por Puigdemont, Comín e seus advogados foi recorrer aos níveis superiores da Justiça Europeia. Inicialmente, solicitaram medidas cautelares para que pudessem estar presente na sessão constitutiva do Parlamento Europeu, mas elas foram rejeitadas. Isso, porém, não significa que a causa esteja perdida, pois segundo o advogado de Puigdemont, Gonzalo Boye, “era previsível que as medidas cautelares não fossem aceitas”, mas avisou que sua equipe “recorrerá”. Ainda de acordo com Boye, “as medidas cautelares eram a forma mais rápida de restituir os direitos dos eurodeputados eleitos”. O advogado afirmou que “agora, se centrarão no fundo do caso, que questiona o sentido democrático da União Europeia”.
Catalunha, no coração da Europa política
As 10 mil vozes que ressoaram diante da sede do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, tinham um único objetivo: reivindicar os direitos políticos dos novos eurodeputados Carles Puigdemont, Toni Comín e Oriol Junqueras, eleitos com o suporte de mais de 2 milhões de cidadãos. Os manifestantes contaram com o apoio de eurodeputados a favor da autodeterminação catalã:
Marisa Matias: a eurodeputada portuguesa relembrou a relação entre a autodeterminação da Catalunha e a de seu país, já que Portugal conseguiu sua independência da Espanha em 1640, ano que coincidiu com a Guerra dels Segadors: “Para os portugueses, a Catalunha tem um significado muito importante, pois a autodeterminação e a independência de Portugal se deve à Catalunha, em 1640. Vocês pagaram um preço para que os portugueses pudessem ser livres e independentes. Ironicamente, o opressor de 1640 era um Felipe (Felipe II), e ainda continuamos com um Felipe”.
Matt Carthy: o eurodeputado irlandês fez duras críticas a Antoni Tajani por causa da ausência de Carles Puigdemont, Toni Comín e Oriol Junqueras na sessão constitutiva. Matt defendeu que todos os votos devem ser respeitados, e criticou a postura de dirigentes europeus em relação aos direitos dos catalães.
Ivo Vajgl: o eurodeputado esloveno fez um claro discurso de apoio à independência da Catalunha: “Nenhuma violência, nenhuma agressão, nenhum juiz e nenhuma prisão pode evitar esse sonho”. Ivo disse que a Catalunha “saberá encontrar sua forma de exercer a autodeterminação”, assim como “a Eslovênia soube”. Além disso, declarou que “quase todos os eslovenos apoiam a independência catalã”.
Gérard Onesta: o eurodeputado francês elogiou o papel “da Europa que enxerga longe, e observa o que acontece nas prisões indonésias, nigerianas e venezuelanas”, mas criticou o fato de essa mesma Europa “não olhar para o próprio jardim”. Onesta também criticou o fato de os líderes catalães não poderem estar no Parlamento, diferentemente de “outros representantes que querem destruir a Europa, porque são racistas, xenófobos, homófobos e sexistas, e estão aqui para destruir a democracia”.